Pedido de Vista: Sobre o que o Poder Judiciário fala quando fala sobre algoritmos?

ITS Rio
11 min readSep 21, 2023

O Pedido de Vista é um projeto, em parceria com a Jusbrasil, que busca, através de dados, fornecer um olhar sobre como o Poder Judiciário está decidindo sobre temas difíceis.

Em 14 de setembro de 2023, a 4ª Vara do Trabalho de São Paulo condenou a empresa Uber a contratar como empregados todos os motoristas que atuam na plataforma. Ao todo, o tema “algoritmo” aparece 18 vezes na decisão.

Mas o que é algoritmo? E como o Poder Judiciário vem tratando do tema? Quais casos demandam um olhar mais apurado sobre o uso de algoritmos? Seriam demandas sobre transparência no contexto da Lei Geral de Proteção de Dados? Ou discussões sobre moderação de conteúdo automatizada em redes sociais? Nada disso.

Uma nova pesquisa realizada pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), em parceria com a Jusbrasil, aponta que a discussão sobre algoritmos nos tribunais acontece, de forma esmagadora, na Justiça do Trabalho.

O ITS analisou aproximadamente 1600 (mil e seiscentas) decisões de tribunais espalhados pelo País em que se discute, de alguma maneira, o uso de algoritmos em uma dada relação jurídica.

Os resultados encontrados pela pesquisa sugerem que a decisão recente da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo faz parte de um crescente número de decisões que, particularmente na Justiça do Trabalho, buscam discutir o papel do algoritmo no desempenho das mais diversas atividades.

Os principais resultados da pesquisa revelam que:

  • 95% das decisões que tratam de algoritmos são oriundas da Justiça do Trabalho;
  • A recorrência do tema na Justiça do Trabalho é uma tendência recente e que só vem aumentando: 92% das decisões foram publicadas nos últimos 3 anos, sendo o primeiro caso de 2016;
  • O termo “algoritmo” aparece também em outros contextos, como em decisões que discutem algoritmos como elementos de prova pericial, processos de criptografia, assinaturas eletrônicas e propriedade intelectual.

Sobre a metodologia:

A pesquisa foi desenvolvida a partir de buscas por palavras-chave na bases de dados contendo decisões judiciais da Jusbrasil, que organiza e cataloga dados abertos de processos judiciais. Embora tenhamos optado por uma metodologia de jurimetria, nossa amostra não é representativa de todas as decisões que tratam de algoritmos. Exemplos de decisões que não seriam encontradas pela nossa metodologia incluem:

  • Decisões sobre algoritmos que não mencionem literalmente “algoritmo” na ementa ou em seu conteúdo;
  • Decisões tomadas em processo protegidos por sigilo, ou que não foram tornadas públicas pelos Tribunais;
  • Decisões que foram processadas na base Jusbrasil, mas de forma inconsistente (como erros de identificação de repetição, ou limitações do processo de extração de texto de arquivos PDFs, por exemplo).

A amostra total sobre a qual nos baseamos resultou em quase 12 mil decisões a serem analisadas. Desse total, selecionamos apenas as que tratam do tema de algoritmos como um elemento relevante para o mérito no caso, chegando assim ao número de 1.592 (mil quinhentas e noventa e duas) decisões.

São exemplos de decisões que citam algoritmos, mas que não foram selecionadas:

  • Decisões que fazem menção ao termo algoritmo como mera referência factual, casual. E.g.: questão de prova de concurso com tema de “algoritmos” ou que descrevem item de edital ou especificações técnicas de contratos;
  • Decisões que usam o termo algoritmo como sinônimo de “cálculo”. E.g: Decisões que usam algoritmo para se referir ao simples cálculo de dano moral ou de dosimetria de pena, ou de cálculo previdenciário ou dosagem de medicamentos;
  • Decisões que usam o termo algoritmo para descrever contextos, sem entrar no tema. E.g. locadoras de veículos que fornecem veículos para motoristas que trabalham em aplicativos.

Importante destacar ainda que usamos como unidade de análise cada decisão encontrada, de forma que não é possível inferir quantos processos estão de fato representados na amostra. Decisões colegiadas, por exemplo, por possuírem mais de um voto podem estar contadas em conjunto. O mesmo ocorre quando há mais de uma decisão em primeira instância no mesmo caso utilizando a expressão “algoritmo”, por exemplo.

Destacamos ainda que o período temporal de decisões analisadas abrange o período de julho de 1994 a junho de 2023 (29 anos), embora a amostra com decisões mencionando algoritmo abranja um período menor, de dezembro de 2012 a junho de 2023 (pouco menos de 11 anos).

Quais tribunais decidem sobre algoritmos? Desde quando?

Como grande parte das decisões analisadas são referentes à Justiça do Trabalho, é fundamental considerar as decisões encontradas em outras áreas como um possível indicativo de tendência, e não como números absolutos ou representativos do total de decisões tomadas pelo estudo.

Quando observamos a linha temporal de crescimento de decisões sobre algoritmos, as seguintes tendências podem ser encontradas:

  • Como seria de se esperar, o tema de algoritmos no Judiciário é recente. De fato, 92% das decisões foram tomadas a partir de 2021 (ver Tabela 1).
  • Temporalidade
  • Entre 2010 e 2015, as decisões sobre algoritmos são pontuais (7 no total) e se referem a discussão de prova pericial, como validade do algoritmo SHA-512 (conjunto de funções hash criptografadas, que são operações matemáticas executadas em dados digitais, em inglês a sigla significa secure hash algorithm) ou de assinaturas eletrônicas (ver Tabela 2).
  • Entre 2016 e 2020, as decisões passam a ser mais frequentes (mais de 110) e há uma maior distribuição entre diferentes instâncias do Poder Judiciário. Além disso, a variedade de temas encontrados nas decisões cresce (embora decisões sobre trabalho por aplicativo já apareçam com destaque na amostra, em 74% dos casos) (ver Tabela 2).
  • Entre 2021 e 2023, o volume de decisões é ampliado, com quase 1.500 decisões encontradas. Os temas continuam a crescer em diversidade, mas decisões sobre trabalho por aplicativo continuam amplamente representadas, totalizando 89% das decisões encontradas (ver Tabela 2).
  • Para além da Justiça do Trabalho, na amostra total, encontram-se 124 decisões que tratam de algoritmos. Dentre os temas que mais se destacam estão decisões sobre plataformas digitais (38 decisões), perícia, prova e assinatura digital (juntas representam 52 decisões), e outros casos bastante pontuais, como propriedade intelectual (7 decisões) (ver tabela 2).
  • Características dos Tribunais
  • Quando olhamos as Cortes Superiores, repete-se a representatividade da Justiça do Trabalho. São 52 decisões encontradas no TST, contra 19 no STJ e 1 no STF. Vale anotar que são contadas decisões de forma individual, por magistrado, desembargador ou ministro, de forma que não se pode diretamente inferir quantos processos estão de fato representados nessas decisões (principalmente em casos de decisão colegiada) (ver tabela 3).
  • Como mencionado acima, identificamos que a maior parte das decisões estão na Justiça do Trabalho, com mais de 1.400 decisões nos diversos TRTs, com destaque para o TRT-3 (Minas Gerais) com 398 decisões e o TRT-13 (Paraíba) com 295 (ver tabela 4).
  • Já nos tribunais não pertencentes à Justiça do Trabalho , as decisões aparecem em menor quantidade, sendo mais prevalentes nos Tribunais de Justiça (75 decisões), Tribunais Regionais Federais (18 decisões) e Tribunais Regionais Eleitorais (13 decisões) (ver Tabela 5)

Tabela 1 — Evolução temporal das decisões encontradas

Tabela 2 — Temáticas da decisão

Tabela 3 — Distribuição nos tribunais superiores

Tabela 4 — Distribuição nos TRTs

Tabela 5 — Distribuição para além dos tribunais superiores e dos TRTs

Como a Justiça do Trabalho avalia o uso de algoritmos e a chamada “subordinação algorítmica”?

Uma das descobertas do estudo é que o termo “algoritmo” tem sido recorrente especialmente na Justiça do Trabalho. Mais de quatro em cada cinco decisões que abordam o tema de algoritmos provém da Justiça do Trabalho. E o que podemos aprender com isso?

  • No âmbito da Justiça do Trabalho, o termo algoritmo aparece na maior parte dos casos discutindo potencial vínculo empregatício entre as pessoas que exercem atividades como as de motoristas ou entregadores através de aplicativos e as empresas responsáveis por essas plataformas;
  • Um dos termos frequentemente encontrados é o de “subordinação algorítmica”, identificado em 586 decisões (aproximadamente metade dos casos encontrados na Justiça do Trabalho).

Vale lembrar que, em 2011, a CLT passou a dispor em seu artigo 6º, parágrafo único que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.” O mergulho nas decisões sobre algoritmos na Justiça do Trabalho oferece ainda uma janela inédita para se compreender quais fatores vêm sendo considerados pelos magistrados e magistradas na configuração de eventual vínculo empregatício.

O mundo todo discute hoje alternativas para oferecer maior segurança para os chamados trabalhadores de aplicativos. Em 2021, a Comissão Europeia submeteu ao Parlamento Europeu uma proposta de Diretiva sobre o tema.

A fim de avaliar o potencial vínculo trabalhista, a proposta de Diretiva determina que sete critérios devem serem considerados:

  • Critério 1: A plataforma de trabalho digital determina limites máximos para o nível de remuneração;
  • Critério 2: A plataforma de trabalho digital exige que a pessoa que executa o trabalho na plataforma respeite regras específicas no que diz respeito à aparência, conduta para com o destinatário do serviço ou execução do trabalho;
  • Critério 3: A plataforma digital de trabalho supervisiona a execução do trabalho, inclusive por meio eletrônico;
  • Critério 4: A plataforma digital de trabalho restringe a liberdade, inclusive por meio de sanções, de organizar o trabalho ao limitar o arbítrio de escolher o horário de trabalho ou os períodos de ausência;
  • Critério 5: A plataforma digital de trabalho restringe a liberdade, inclusive por meio de sanções, de organizar o próprio trabalho ao limitar o arbítrio de aceitar ou recusar tarefas;
  • Critério 6: A plataforma de trabalho digital restringe a liberdade, inclusive por meio de sanções, de organizar o próprio trabalho, limitando o arbítrio de usar subcontratados ou substitutos;
  • Critério 7: A plataforma de trabalho digital restringe a possibilidade de construir uma base de clientes ou realizar trabalhos para terceiros;

À luz desse contexto, nossa pesquisa procurou identificar quais dos elementos apontados acima já estariam sendo levados em consideração por magistrados e magistradas ao decidir casos envolvendo algoritmos na Justiça do Trabalho brasileira. Esse olhar permite antecipar convergências e identificar, ainda que preliminarmente, os pontos com menor aderência no cenário brasileiro.

Sem entrar no mérito das decisões (ou da proposta europeia), analisamos uma amostra aleatória de 50 decisões na Justiça do Trabalho para encontrar a presença/ausência dos critérios propostos no regulamento europeu.

A partir da amostra de 50 decisões, identificamos que a maioria (36 decisões) foram julgadas procedentes quanto ao pedido do reconhecimento de vínculo empregatício de trabalhadores de plataformas. Esse dado não deve, porém, ser lido como representativo de todo Judiciário, e sim como uma característica do universo que analisamos nessa etapa da pesquisa.

Os principais dados encontrados são (ver Tabela 6):

  • Os critérios com maior frequência (1, 2, 3 e 6) foram encontrados em média em três a cada cinco decisões, sendo um de aparição alta na amostra. São esses:
  • O critério 1 (i.e. limite máximo para remuneração do trabalhador)
  • O critério 2 (i.e. a observância de regras no que diz respeito à aparência, conduta para com o destinatário do serviço ou execução do trabalho)
  • O critério 3 (i.e. supervisão da execução do trabalho por meio da plataforma digital)
  • O critério 6 (i.e. limitação da liberdade de organizar o próprio trabalho)
  • Um dos critérios aparece em quase metade da amostra:
  • O critério 5 (i.e. Limitação de organizar o próprio trabalho ao limitar o arbítrio de aceitar ou recusar tarefas;)
  • Dois critérios aparecem com baixa frequência. São eles:
  • O critério 4 (i.e. limitação na possibilidade de escolher o horário de trabalho ou os períodos de ausência;)
  • O critério 7 (i.e restringir a possibilidade de construir uma base de clientes ou realizar trabalhos para terceiros)

O que se conclui a partir dos dados acima é que existe alguma convergência entre as decisões brasileiras e a proposta europeia no esforço de identificar parâmetros para o reconhecimento de vínculo.

Chama atenção que os itens com menor aderência são justamente aqueles que se parecem menos apropriados para as atividades contratadas através de plataformas, já que raramente os termos desses aplicativos existem limitações à escolha do horário de trabalho/períodos de ausência ou demandas por exclusividade. Ao contrário, é da essência de muitos desses serviços que a pessoa possa escolher o horário em que vai desenvolver suas atividades, sem qualquer requisito de exclusividade.

Por outro lado, destacamos a presença constante do item 3 (“supervisão da execução do trabalho por meio da plataforma digital”) como um elemento definidor do vínculo. Supervisão é um componente usual na estruturação de uma atividade hierarquizada, na qual existiria subordinação. Esse é um elemento recorrente nas decisões da Justiça do Trabalho, que destacam funcionalidades como o monitoramento da localização ou a possibilidade do motorista ou entregador ser punido por violação de regras da empresa.

De toda forma, a visão ampla dos diferentes critérios ajuda a compreender como diferentes atividades podem ser desempenhadas a partir de plataformas e como reguladores e magistrados precisam estar atentos ao conjunto de elementos que devem ser levados em consideração.

Tabela 6 — Percentual de critérios presentes nas 50 decisões analisadas

Próximos passos

O uso da metodologia de jurimetria é fundamental para conhecer as características do processo judicial. A peculiaridade do Brasil de ter um sistema judicial tão digitalizado, e que preza como princípio pela transparência de dados, representa um potencial ainda maior para compreender rapidamente tendências e seus impactos em temas que estão na mesa dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

O que este estudo preliminar revela:

  • O tema algoritmos (e potencialmente novas tecnologias em geral) está presente no Judiciário brasileiro.
  • O termo algoritmo aparece com maior frequência em decisões da Justiça do Trabalho, versando sobre o vínculo empregatício no contexto do chamado trabalho por plataforma.
  • O ritmo de crescimento do número de decisões é significativo e os contextos onde aparecem também estão se diversificando para além do da Justiça do Trabalho.

Tendo em vista essa questão, parece haver um espaço para um debate mais amplo sobre:

  • Qual o papel do algoritmo nas funções desempenhadas por diferentes profissionais nas mais distintas atividades? Quais critérios poderiam ser levados em consideração no debate sobre a existência de vínculo empregatício? Qual o peso dos diferentes critérios caso existam ou não em certos casos? Quais soluções podem ser encontradas para que se promova uma maior segurança para uma parcela expressiva de pessoas que atua em atividades como as de motorista ou de entregadores através de aplicativos?
  • Como outros temas (perícias e provas judiciais, assinaturas eletrônicas e propriedade intelectual) se relacionam com o debate sobre algoritmos no Poder Judiciário?

Sobre a pesquisa

A metodologia deste estudo é fruto de um piloto de jurimetria aplicado à base de dados de processos judiciais organizados pela Jusbrasil. A melhoria de processos de abertura de dados pelos tribunais é um passo fundamental para que análises como essa sejam possíveis, jogando luz sobre o debate de temas complexos na Justiça brasileira. O Poder Judiciário possui iniciativas pioneiras de digitalização de dados e de acesso à Justiça no Brasil, mas os desafios são sempre renovados na medida em que as tecnologias da informação avançam. Esperamos que o movimento pela abertura de dados no Poder Judiciário possa seguir sendo aperfeiçoado, fomentando cada vez mais pesquisas que impulsionam a prática e a reflexão sobre temas relevantes para a sociedade brasileira.

“Sobre o que o Poder Judiciário fala quando fala sobre algoritmos?” é o primeiro lançamento do projeto Pedido de Vista, do Instituto de Tecnologia e Sociedade. O projeto busca, através de dados, fornecer um olhar sobre como o Poder Judiciário está decidindo sobre temas difíceis.

Para mais detalhes sobre a metodologia adotada ou sobre os próximos passos do projeto basta escrever para itsrio@itsrio.org. Estamos à disposição para receber suas sugestões, correções ou comentários, auxiliando assim nas etapas futuras de nosso trabalho.

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O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio estuda o impacto e o futuro da tecnologia no Brasil e no mundo. — www.itsrio.org