Introdução ao dinheiro, às criptomoedas, CBDCs e stablecoins
“A maneira mais rápida de dobrar seu dinheiro é dobrar uma nota ao meio e colocá-la no bolso de trás.”
Will Rogers
Ganhar dinheiro é um dos desafios mais comuns de que todos nós compartilhamos. Estamos constantemente expostos a novas formas de ganhar, economizar e gerenciar nosso dinheiro. O dinheiro ajuda a canalizar os bens e serviços e alimentar nossa economia. Ele também desempenha um papel importante na tomada de decisões e na definição de prioridades e pode afetar nossa capacidade de navegar em diferentes grupos sociais. Mas quando a maioria de nós pensa em dinheiro, o papel-moeda vem à mente. Por que não usamos mais ouro ou outros objetos físicos? E quanto aos pagamentos digitais? E onde as criptomoedas, CBDCs e stablecoins se encaixam nisso tudo?
I. Por que nós usamos papel-moeda?
Vamos explorar essas questões a partir do exemplo anedótico de um agricultor de maçãs chamado João.
João vive em uma pequena cidade que não dispõe de nenhuma moeda formal para trocar mercadorias. Junto com seus vizinhos, ele precisa encontrar uma maneira de adequar a demanda pelos bens e serviços que todos estão produzindo com a oferta disponível. Primeiramente, eles se voltam ao escambo, um sistema onde os membros da comunidade trocam bens e serviços diretamente. Com base nesse sistema de troca, João conseguiu um novo par de sapatos confortáveis após uma longa estação de colheita de maçãs. Ele levou algumas camisas que já não usava mais para o mercado com a esperança de trocá-las por um par de sapatos que resistisse à próxima temporada de cultivo. Ao encontrar os sapatos que ele gostou, João e o vendedor de sapatos tiveram que encontrar uma maneira de calcular quantas e que tipo de camisas teriam um valor adequado para servir de base troca pelos sapatos.
À medida que João envelhecia, a sociedade avançava e se tornava mais interconectada. Como resultado, o escambo se tornava um sistema de trocas cada vez mais ineficiente. Os vizinhos de João nem sempre queriam suas camisas velhas. Eles precisavam de um novo meio de troca que todos aceitassem e que pudesse expandir o comércio, tanto na cidade de João como em outras cidades. Eles precisavam de uma forma de realizar trocar que fosse durável, portátil, divisível, limitada em oferta e amplamente aceita. Em outras palavras, eles precisavam desenvolver dinheiro.
João e seus vizinhos decidiram que as maçãs se tornariam esse novo meio de troca.
João ficou muito animado, pois agora ele podia literalmente plantar dinheiro!
Infelizmente para ele, as maçãs não duraram muito como uma forma de dinheiro viável. As maçãs apodrecem depois de um certo tempo, então elas não são muito duráveis. As maçãs também são pesadas, o que as torna pouco portáteis. Imagine como seria comprar uma casa cara usando maçãs. Transferir um pagamento em maçãs através de montanhas, rios ou oceanos se provaria uma tarefa monumental.
A divisibilidade constituía outro desafio. Em tese, seria possível determinar exatamente quanto cada tipo ou tamanho de maçã valeria, mas isso se tornaria cada vez mais complicado em vista das variedades de maçãs e dos debates sobre a divisibilidade exata de cada uma dessas variedades. Como já falamos anteriormente, as maçãs crescem em árvores, então seu suprimento é mais difícil de controlar. Teoricamente, qualquer um poderia começar a cultivar seu próprio dinheiro e eventualmente as maçãs perderiam seu valor, à medida que a oferta de maçãs ultrapassasse a oferta de bens e serviços disponíveis. Também teríamos que convencer todos em nossa sociedade de que as maçãs possuem valor e constituem uma forma legítima de troca.
II. As moedas e papel-moeda: de 600 a.C. ao século XXI
O exemplo acima destaca os inúmeros desafios que levaram as sociedades a recorrer primeiro às moedas cunhadas e posteriormente ao papel-moeda. Os historiadores acreditam que o dinheiro em forma de moedas se originou na Grécia moderna por volta de 600 a.C. As moedas podem ser pesadas e não são a forma mais portátil de dinheiro, então logo as sociedades adicionaram uma opção ainda mais portátil — o papel-moeda. Os historiadores acreditam que o papel-moeda se originou na China por volta dos anos de 997–1022 do calendário gregoriano, durante o reinado do imperador Zhenzong. Mais de 500 anos depois, o papel-moeda chegou à Europa e nos séculos XVIII e XIX tornou-se amplamente utilizado. As pessoas se voltaram para o papel-moeda por conta de sua durabilidade, divisibilidade, portabilidade, controle de oferta e ampla aceitação. Durante mil anos, o papel-moeda foi amplamente aceito como um instrumento de troca.
Consideramos o papel-moeda ou dinheiro moderno como uma forma de moeda fiduciária, ou seja, que possui valor porque um governo a emite como moeda corrente. Isso significa que é uma moeda legalmente reconhecida que pode ser usada para pagar dívidas e impostos. Simultaneamente, os sistemas judiciais das nações reforçam essa capacidade. O dinheiro emitido pelos governos também permite que eles gerenciem a oferta de dinheiro em circulação. Quando há mais dinheiro do que bens e serviços na economia, a consequência é a inflação, e o governo pode aumentar as taxas de juros para reduzir a quantidade de dinheiro circulante na economia. Quando ocorre o contrário, o governo pode reduzir as taxas de juros para incentivar mais empréstimos e a injeção de dinheiro na economia.
O papel-moeda é a forma pela qual a maioria das pessoas mantém a posse de moeda fiduciária. Em termos práticos, guardar papel-moeda é uma das formas mais seguras de armazenar valor para transações ou compras futuras. O papel-moeda será sempre aceito no país em ele for a moeda corrente. Algumas formas de papel-moeda, como o dólar dos Estados Unidos, serão aceitas até mesmo em países estrangeiros, em parte porque o país emissor daquela moeda goza de uma reputação forte e confiável.
Agora vamos discutir nossas interações modernas com o dinheiro: um agricultor chamado João vivendo nos tempos modernos agora utiliza papel-moeda para negociar com seus vizinhos. De maneira mais realista, João agora pode comprar suprimentos e insumos agrícolas de todas as partes do mundo como forma de expandir seus negócios. Ele pode até começar a importar e cultivar frutas estrangeiras e exóticas e aprender novas práticas agrícolas de um parceiro de negócios estrangeiro. Em vez de guardar papel-moeda em casa, o João dos tempos modernos se vale de um banco comercial para guardar o dinheiro de sua fazenda e pagar todas as suas despesas agrícolas, tais como os salários de seus funcionários ou os equipamentos necessários. E por conta da proliferação da internet, João hoje pode utilizar um website e as plataformas digitais para fazer pedidos e interagir com fornecedores e clientes.
III. Papel-moeda x dinheiro digital
O mundo moderno se transformou de uma economia localizada entre vizinhos para uma grande empresa global conectada por meios digitais, onde podemos obter suprimentos e ideias a partir dos lugares mais distantes. Simultaneamente à evolução do comércio e da economia mundial, o dinheiro também evoluiu, tornando-se cada vez mais digital.
No mundo inteiro, pelo menos 69% dos adultos guardam seu dinheiro em uma conta registrada em uma instituição financeira ou um provedor de dinheiro móvel. Essas contas permitem que as pessoas armazenem dinheiro em formato digital e usem soluções e serviços de pagamento para realizar transações digitalmente sem utilizarem dinheiro físico. Mas espere um momento. Se nós já usamos plataformas digitais para pagar por nossas despesas, nós já não estamos usando dinheiro digital? Bem, embora as plataformas e serviços de pagamento digital tenham se tornado comuns, nossa definição de dinheiro digital continua a se desenvolver com a evolução da infraestrutura digital subjacente que suporta os pagamentos e o próprio dinheiro. Vamos tratar disso em mais detalhe e em seguida abordar novas fronteiras de pagamentos digitais — criptomoedas, CBDCs e stablecoins.
IV. Dinheiro digital
Começaremos com o dinheiro que é guardado em uma conta bancária comercial, ou seja, a concepção mais popular de dinheiro digital. Quando depositamos nosso dinheiro em uma conta bancária, podemos pagar a um comerciante por seus produtos e serviços. Embora isso pareça que estamos digitalmente entregando dinheiro em papel a um comerciante, isso não é realmente o que acontece nos bastidores.
Na verdade, o dinheiro que depositamos em uma conta bancária comercial é um depósito à vista. Isso significa que quando armazenamos dinheiro em um banco, nós estamos efetivamente emprestando essa moeda ao banco. Quando “exigimos” sacar ou retirar o dinheiro, o banco é legalmente obrigado a nos devolvê-lo em forma de moeda fiduciária. Porém, enquanto nosso dinheiro está depositado no banco, ele é livre para fazer o que quiser com ele. Normalmente, o banco empresta nosso dinheiro a outras partes e recebe os juros daquele empréstimo. Ou seja, eles ganham dinheiro com nosso dinheiro que está depositado. É claro que se todo mundo sacar seu dinheiro de uma só vez, um banco normalmente não poderá cumprir sua promessa de resgatar nossos depósitos em forma de dinheiro, já que geralmente eles emprestam a maior parte, quando não nosso dinheiro todo. Existem exigências para que os bancos mantenham uma reserva em dinheiro e seguros para resolver a questão, permitindo que os clientes recuperem seus fundos em caso de emergência.
Sendo assim, quando pagamos o João dos tempos modernos usando nossos telefones celulares ou cartões de crédito, o que realmente acontece é que nosso banco está transferindo sua obrigação de nos pagar de volta pelo nosso “empréstimo” para o banco do João. Como estamos tão acostumados ao papel dos bancos comerciais em nossa economia e sociedade, e os governos normalmente impõem exigências de reservas e fornecem seguros bancários, usar nossas contas bancárias aparenta ser um substituto semelhante ao dinheiro, apenas em um formato digital mais conveniente. Atualmente contamos até com serviços e aplicativos móveis, tais como Venmo, Wise e Remitly para realizar pagamentos internacionais, que podem armazenar dinheiro e iniciar pagamentos “peer-to-peer” (de pessoa para pessoa) usando nossas próprias contas ou comunicando-se com nossos bancos. Esses serviços também contam com a transferência de depósitos à ordem.
À medida que o mundo adota cada vez mais a internet e as tecnologias, plataformas, bens e serviços digitais que ela possibilita, o papel-moeda tem sido lentamente substituído pelos pagamentos digitais. No Reino Unido, os pagamentos em dinheiro físico representaram apenas uma em cada seis transações em 2020.[1] A modalidade de comércio eletrônico e a pandemia de COVID-19 aceleraram ainda mais esse processo, especialmente no continente asiático. Índia, Coreia do Sul, China e Tailândia representam o maior número de pagamentos digitais em 2021.[2] Mais especificamente, a Índia liderou o grupo com mais de US$ 25 bilhões em transações digitais.
Com o crescente uso do dinheiro digital, as sociedades têm repensado sua relação com o papel-moeda. E nesse caso, a China está mais uma vez na vanguarda dessas tendências. Em 2014, o país começou a introduzir no mercado sua própria versão de dinheiro digital, uma CBDC, ou Central Bank Digital Currency (“Moeda Digital do Banco Central”). As Bahamas foram ainda mais longe ao se tornarem o primeiro país a ter uma moeda digital legal, conhecida como Sand Dollar, que atualmente constitui uma alternativa ao tradicional dólar das Bahamas, na sua versão em papel.[3] Além disso, países como El Salvador declararam o Bitcoin, a criptomoeda mais popular do mundo, como uma forma de moeda corrente.
A essa altura, você deve estar se perguntando: O que é uma criptomoeda e como ela é diferente de outras formas de dinheiro digital? O que é uma moeda digital do banco central (CBDC) e onde uma stablecoin se encaixa nisso tudo?
Nas próximas seções, vamos nos aprofundar em todas essas questões.
V. Criptomoedas
Criptomoeda é qualquer forma de pagamento que exista digitalmente e não possua uma autoridade central emissora ou reguladora que gerencie sua oferta e utilização. Essa é a diferença crucial entre as criptomoedas e outras formas de moedas, como uma cédula física de dólar americano ou os US$ 100 que existem depositados em uma conta bancária tradicional. As criptomoedas não estão sujeitas ao controle de uma autoridade reguladora como o Tesouro dos Estados Unidos. Além disso, elas se valem de tecnologias como criptografia, funções de hash e mecanismos de consenso para proteger e registrar transações. Para mais informações sobre os fundamentos do blockchain, consulte nossa breve Introdução à Blockchain.
Diferentemente das transações de bancos comerciais descritas acima, as criptomoedas não dependem de terceiro como um banco, por exemplo, para verificar uma transação. Em vez disso, um sistema peer-to-peer permite que os participantes enviem e recebam pagamentos diretamente. Esses pagamentos são registrados e protegidos em um ledger distribuído[4] e as criptomoedas são armazenadas em carteiras digitais. As unidades de criptomoeda são criadas por um processo chamado “mineração”, que envolve sistemas de software de computador que resolvem problemas matemáticos complicados para emitir novas unidades/moedas. Os proprietários de criptomoedas possuem unidades digitais de Bitcoins, mas esses ativos são intangíveis. Essencialmente, os proprietários de criptomoedas possuem uma unidade que podem transferir para outras partes ou manter e reivindicar a propriedade sem que precisem gastar com terceiros. Criado em 2009, o Bitcoin é a primeira e mais popular criptomoeda do mundo. Ethereum é outra criptomoeda popular criada alguns anos depois, em 2015.
Os desafios no caminho
A volatilidade dos preços talvez seja o desafio mais conhecido no setor de criptomoedas. No verão de 2017, um Bitcoin valia cerca de US$ 2.500. Três anos depois, um Bitcoin chegou a valer quase US$ 50.000. Atualmente, em meados de junho de 2022, um Bitcoin vale US$ 23.000.
Ou seja, ao longo de três anos (2017–2020, o preço do Bitcoin teve um aumento impressionante da ordem de 2.000%. Entretanto, desde 2020 o preço da criptomoeda já caiu mais de 50%. A volatilidade do Bitcoin torna muito difícil que ele seja uma forma de pagamento confiável para transações do dia a dia ou para contratos de longo prazo que envolvam pagamentos fracionados por um período de vários anos. Da mesma forma, a volatilidade dos preços é um problema para muitas criptomoedas, não apenas para o Bitcoin.
Além disso, sua aceitação constitui um desafio significativo. Os sistemas de pagamento tradicionais expandiram seu alcance em todos os tipos de transações para torná-los fáceis de usar. Por exemplo, a maioria dos cartões de crédito oferece pagamentos sem contato físico em moedas correntes nacionais, como o dólar americano. A maioria das empresas também aceita os principais cartões de crédito, como Visa ou MasterCard. Em comparação, pouquíssimos comerciantes aceitam pagamentos em criptomoeda. À medida que a infraestrutura de pagamento para a economia de criptomoedas se desenvolver, esses problemas se tornarão menos relevantes, mas as criptomoedas ainda estão longe de ter um alcance quase onipresente que possa realmente desafiar os pagamentos digitais tradicionais.
As criptomoedas também sofrem de inúmeros problemas de reputação, mais notadamente por serem consideradas facilitadores de atividades criminosas. Os parlamentares dos EUA têm colocado as criptomoedas sob intenso escrutínio por conta de sua associação aos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção. Os primeiros projetos de lei que visam regular as criptomoedas no Brasil também têm se concentrado diretamente nessas questões. Relatos de que o governo russo tem evitado as sanções econômicas ao aceitar pagamentos em criptomoedas têm alimentado ainda mais o ceticismo quanto às criptomoedas.
Especialistas do Brookings Institute alertam que esses temores são baseados em uma “compreensão imprecisa de como a tecnologia funciona” e falham “em lidar com a dinâmica complexa atualmente em jogo entre cibercriminosos, entidades sancionadas e órgãos responsáveis pela aplicação da lei”. O Brookings Institute acrescenta que “embora o Bitcoin e as demais criptomoedas impliquem algum grau de anonimato, elas são altamente rastreáveis”.[5] Com o tempo, as percepções podem mudar à medida que a aplicação da lei melhora sua capacidade de rastrear fundos ilícitos de criptomoedas. Mesmo assim, as criptomoedas ainda têm um longo caminho a percorrer para transformar a opinião pública no âmbito de sua associação com atividades criminosas.
Embora as criptomoedas enfrentem muitos outros desafios, a tributação e a regulamentação são duas das questões finais que gostaríamos de destacar. Os regulamentos atuais têm criado uma colcha de retalhos de regimes de conformidade e compliance para investidores em muitos países. Navegar nesta miscelânea de leis e regulamentos desafia os investidores mitigar riscos e investir com um maior grau de segurança. Novas regras têm sido debatidas e implementadas em ativos tributáveis, as quais variam de salários, ganhos de capital e sociedades coletivas. Novas diretrizes para informes financeiros também precisam ser implementadas, especialmente devido ao potencial que as criptomoedas sejam usadas para sonegação fiscal.
Questões regulatórias adicionais incluem decisões sobre o tratamento de ativos criptográficos como commodities ou títulos. Os tribunais dos EUA se valem principalmente do teste de Howey para determinar se um ativo deve ser regulamentado como um security (um título) ou uma mercadoria. As criptomoedas criaram muitos desafios para a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC), pois o órgão se vê obrigado a lidar com diferentes casos de criptomoedas que têm ultrapassado os limites dos marcos regulatórios estabelecidos para regulação de ativos. A abordagem da SEC também tem sido seguida cuidadosamente por outras agências reguladores do mundo inteiro, à medida que o uso de criptomoedas continua a crescer.
VI. CBDCs
Agora que entendemos as diferenças entre moedas fiduciárias, dinheiro de bancos comerciais e criptomoedas, podemos começar a conceituar onde uma moeda digital do banco central (CBDC) se encaixa. Uma CBDC basicamente busca adquirir o status de moeda corrente legal do papel-moeda, com toda a segurança e respaldo dos governos, e transformá-lo em uma moeda digital. Imagine os benefícios de poder armazenar dinheiro que você possa usar sempre mesmo nas piores circunstâncias econômicas, em uma conta digital. Você poderia acessar todos os benefícios dos pagamentos digitais, tais como enviar dinheiro de um país estrangeiro para seus pais em qualquer parte do mundo. Você poderia devolver imediatamente ao seu amigo o dinheiro que ele usou para pagar sua refeição uma semana antes sem ter que encontrá-lo pessoalmente. Mas tudo isso poderia ser feito com a garantia de que seu dinheiro digital é tão bom quanto dinheiro em papel, sem medo de uma corrida aos bancos que pudesse te deixar sem seu dinheiro suado.
E isso não é tudo. As CBDCs podem operar sem cobrar tarifas bancárias aos seus titulares ou comerciantes que as aceitem. Os pagamentos podem ser feitos de forma mais rápida e eficiente, simplificando o processo de transferência de dinheiro entre contas digitais e carteiras. O mundo pode se tornar mais inclusivo e conectado financeiramente por meio da adoção de uma CBDC e da redução das barreiras financeiras. Com inúmeras possibilidades de design, os bancos centrais podem emitir suas próprias carteiras eletrônicas por meio de parcerias com instituições existentes ou assumir um papel mais ativo no fornecimento de acesso à moeda digital do banco central por meio de contas. Essas carteiras eletrônicas ou contas podem superar os obstáculos que grupos marginalizados e de baixa renda enfrentam no acesso aos serviços financeiros. Por exemplo, a Nigéria apresentou a eNaira, que oferece uma moeda digital para aqueles que não possuem documentos de identidade ou residência formal. Esses tipos de programas também podem servir como um ponto de entrada para a construção de crédito e garantia de empréstimos para populações com acesso limitado a serviços bancários[1]
As CBDCs também podem ajudar a preservar a privacidade e o anonimato, limitando quais instituições, se houver, possuem acesso às suas informações de identidade digital. Por outro lado, elas também poderiam auxiliar a prevenção do uso ilícito de dinheiro, simplificando o rastreamento de fluxos financeiros para as autoridades governamentais. As CBDCs também permitem que os governos mantenham sua capacidade de gerenciar a oferta de dinheiro, que é uma função crítica especialmente em tempos de inflação alta. As possibilidades são múltiplas, mas tudo depende de como os recursos e a arquitetura de uma CBDC são projetados. Os bancos centrais dos países podem assumir um papel mais ativo na condução da política monetária visando estabilizar as economias. Juntamente com os graus de liberdade permitidos pela capacidade de programação dos produtos digitais, também surgem inúmeras opções de política e design.
Os desafios no caminho
A estrutura de design, as preocupações com privacidade e os riscos de segurança cibernética constituem três desafios significativos para a implementação das CBDCs. As principais questões incluem como uma CBDC é projetada para alocar responsabilidades entre um banco central e os bancos comerciais e instituições financeiras de um determinado país. Uma CBDC permitirá que um banco central acesse ou até mesmo exija informações de identificação digital ou priorizará o anonimato — semelhante ao papel-moeda — apesar do potencial para volumes maiores de transações em moeda digital?
Os céticos quanto às CBDCs apontam para o rastreamento aprimorado de transações como uma ameaça à privacidade e um veículo para vigilância por parte dos governos. Por outro lado, o acesso dos bancos centrais à identidade do usuário pode facilitar os objetivos de combate à lavagem de dinheiro, assim como políticas monetárias e coleta de dados econômicos mais eficazes. Seja como for, a atribuição desse ônus de proteção à privacidade continua sendo uma questão controversa. Uma CBDC será projetada de forma que os bancos comerciais emitam e registrem transações ou essa responsabilidade recairá sobre os bancos centrais? Os bancos centrais que assumem esse papel aumentariam muito o envolvimento público e governamental nas atividades comerciais, ao passo que a continuidade dos bancos comerciais em realizar essa função traz à tona questões sobre a confiança nas instituições privadas.
Além disso, a implementação de uma CBDC exigirá que os bancos centrais assumam uma tarefa importante na manutenção da infraestrutura digital e física, introduzindo novos pontos de risco de segurança cibernética. As CBDCs incitam muito mais questões do que o design do papel-moeda, mas, alternativamente, oferecem muito mais potencial para adoção de uma nova era de atividade econômica e digital.
VII. Stablecoins
À medida que as criptomoedas baseadas em blockchain e as CBDCs continuam a se desenvolver, cresce também a necessidade de uma moeda nativa de blockchain mais estável. As criptomoedas originais nascidas na blockchain, tais como Bitcoin e Ethereum, alimentam naturalmente seus respectivos ledgers e, no caso da segunda, seus aplicativos descentralizados. Embora a economia digital ainda esteja determinando se essas criptomoedas adotarão todas as funções tradicionais do dinheiro (reserva de valor, meio de troca e unidade de conta), ou aspectos dessas funções, seus valores em relação ao dólar continuam a flutuar muito, atualmente. Elas são muito voláteis para substituírem as moedas fiduciárias tradicional. Enquanto isso, a evolução dos aplicativos e aplicativos baseados em web3 e blockchain têm continuado a crescer com a adoção das NFTs, das Finanças Descentralizadas (DeFi), do metaverso e de uma série de aplicativos descentralizados (DApps) em uma economia cada vez mais digital. Esse ecossistema exige uma moeda nativa da blockchain para alimentar a atividade econômica.
Para tanto, as stablecoins oferecem uma solução potencial.
Stablecoins são geralmente criptomoedas nativas da blockchain com seus valores atrelados ao valor de mercado de uma referência externa com preço estável, normalmente uma moeda fiduciária. Stablecoins populares incluem a Tether, a USD Coin e a TerraUSD. As stablecoins mantêm seu valor e lastro através de várias medidas. Popularmente, elas são lastreadas em moedas fiduciárias, como o dólar. Esse tipo de moeda é conhecido como stablecoin com garantia fiduciária. Essas stablecoins, como a Tether e a USD Coin, mantêm uma reserva de moeda fiduciária mantida por uma instituição ou autoridade centralizada que promete que todas as stablecoins produzidas ou “cunhadas” sejam lastreadas por um valor equivalente em moeda fiduciária. Portanto, teoricamente os indivíduos podem resgatar suas stablecoins em troca de moeda fiduciária. Existem outras formas de lastro descentralizado ou “colateral”, como por exemplo commodities de ouro ou até mesmo Bitcoins. Algumas stablecoins nem sequer são lastreadas por colaterais. Em vez disso, elas dependem de algoritmos e incentivos de mercado estruturados para manter seu valor ou lastro a uma moeda ou valor fiduciário estável.
Os desafios no caminho
As stablecoins oferecem uma solução produzida no mercado privado para a emissão de uma moeda de valor estável que possa ser usada na compra de bens e serviços na economia digital blockchain e na economia do mundo real, mas não são isentas de problemas. Atualmente, essas moedas não são regulamentadas e representam riscos significativos derivados dessa falta de supervisão. Seus principais problemas envolvem sua estrutura de gerenciamento. No caso das stablecoins com garantia fiduciária, a autoridade central de gestão pode não lastrear a oferta de stablecoins com um valor equivalente em moeda fiduciária. Talvez elas estejam lastreando suas stablecoins em ativos menos líquidos ou mais arriscados, que podem comprometer a possibilidade de resgate de stablecoins em troca de moeda fiduciária. As stablecoins algorítmicas também apresentam potencial para que suas stablecoins percam valor rapidamente, dependendo das vulnerabilidades de seus mecanismos algorítmicos e de incentivo. Além disso, as contas ou carteiras de stablecoins não são amplamente seguradas ou protegidas por seguros ou regulamentos apoiados pelo governo, desenvolvidos ao longo de décadas.
Em parte, as CBDCs estão sendo desenvolvidas para responder aos riscos inerentes às stablecoins. Como uma forma digital de moeda do banco central, as CBDCs provavelmente contarão com as formas de proteção discutidas acima. Mesmo assim, uma questão que permanece sem resposta é se os CBDCs também assumirão as funções das stablecoins em sua arquitetura. As CBDCs serão interoperáveis com as tecnologias blockchain ou permanecerão confinadas ao uso no varejo na economia tradicional? Seremos capazes de comprar bens e serviços na economia digital usando CBDCs? Essas perguntas persistem e dependem em grande parte das escolhas políticas envolvidas concepção de uma determinada CBDC.
VIII. Conclusão
Atualmente, estamos testemunhando a emergência um novo tempo. A digitalização de nossa economia e sua integração com os bens e serviços tradicionais continua a mudar a forma como nos relacionamos como vizinhos e participantes de um mundo interconectado. Os governos e as entidades privadas têm interesse em criar novas soluções que se adaptem às novas atividades econômicas e trocas. As criptomoedas, stablecoins e CBDCs constituem respostas às novas fronteiras digitais, além de reformarem a maneira como interagimos com as fronteiras tradicionais. Muitas perguntas ainda permanecem em aberto, mas os tópicos discutidos aqui fornecem uma base para os principais fatores com os quais todos nós teremos que lidar e considerar daqui em diante.
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*Sinclair Kennedy Traveling Fellow Harvard University & International Fellow ITS Rio
** Incoming Corporate Associate @ Hogan Lovells LLP