Experiências imersivas: das cavernas pré-históricas aos óculos de realidade virtual
O termo “imersão” tem sido largamente utilizado na contemporaneidade para se referir às tecnologias e aos ambientes imersivos cada vez mais explorados nos cruzamentos entre tecnologia e arte. Diversas áreas do conhecimento se utilizam de tecnologias facilitadoras da imersão para aprimorar seus processos, produtos e procedimentos. Entretenimento, educação, segurança do trabalho, cultura e o próprio metaverso são alguns exemplos de campos de sua aplicação. Mas a verdade é que as experiências imersivas não são uma invenção das novas tecnologias. Na verdade, estas experiências fazem parte da história da humanidade há muito mais tempo do que muitos de nós costumam imaginar.
Imersão, o que é isso?
Para começar a abordar este assunto precisamos, primeiro, compreender o que significa o termo “imersão”. A palavra vem do latim, immersio, que é, por definição, um mergulho. Sua ação correspondente é a de se introduzir ou introduzir algo em um fluido ou líquido. Submergir, afundar, envolver, rodear(-se) de. Partindo da metáfora de mergulharmos e estarmos submersos na água, cotidianamente usamos a palavra imersão para definir algo em que estamos completamente envolvidos — em um livro, um filme, um trabalho ou processo criativo.
Janet Murray, em seu livro Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço, afirma que aquilo que buscamos de uma experiência psicologicamente imersiva é “a sensação de estarmos envolvidos por uma realidade completamente estranha, tão diferente quanto a água e o ar, que se apodera de toda a nossa atenção, de todo o nosso sistema sensorial”. Dominic Arsenault, professor da Universidade de Montreal, complementa esta definição afirmando que a imersão acontece quando estamos tão envolvidos em determinada atividade que deixamos de perceber os eventos à nossa volta e somos quase que suspensos da realidade.
Das cavernas às salas de cinema
Esta suspensão proporcionada pela imersão é comumente associada a experiências espirituais e artísticas, e é justamente por meio destas duas vertentes que conseguimos traçar uma trajetória da imersão. Para Stella Spironelli, autora da dissertação A imersão na história da arte — um paralelo entre o passado e o presente, esta trajetória se inicia 17 mil anos atrás nas cavernas pré-históricas de Lascaux. Tanto por suas características arquitetônicas e artísticas quanto pelos rituais e celebrações espirituais que lá aconteciam, estas cavernas são consideradas os ambientes imersivos mais primitivos de que se tem conhecimento.
Esta relação entre ambientes sacros, arte e imersão está também presente no teatro grego e nas catedrais góticas. Nos teatros, a disposição dos assentos era pensada a fim de direcionar o olhar do espectador para que a atenção não fosse dispersa. Já nas catedrais, a composição arquitetônica era utilizada para incitar nos fiéis um estado de elevação, facilitando a entrada em um outro estado de consciência. Esta suspensão da realidade era provocada pelos jogos de luzes e cores dos vitrais, pela reverberação do som e pelo formato das ogivas. Ali, diversos sentidos eram estimulados a fim de provocar a sensação de sublimação.
A imersão na arte segue sua trajetória até o Renascimento, onde a descoberta da perspectiva, baseada nos estudos da geometria, altera a percepção espacial das figuras ao possibilitar a ilusão de espessura e profundidade das imagens. Este movimento representou um divisor de águas ao deixar para trás a bidimensionalidade do período medieval. Como afirma Oliver Grau em seu livro Arte virtual: da ilusão à imersão, “com o auxílio da técnica visual da perspectiva, as estratégias de imersão ganharam enorme impulso, pois permitiam aos artistas retratarem de forma convincente muito do que até então só fora aludido.”
O desenvolvimento das técnicas facilitadoras da imersão se aprimora e passa a figurar nos tetos de castelos e igrejas (como os tetos da Igreja de Santo Inácio de Loyola e da Capela Sistina, por exemplo), e, por volta dos anos 1700, fazem parte essencial da composição dos famosos panoramas. O panorama consistia em uma construção circundada internamente por uma pintura em 360 graus que utilizava técnicas de perspectiva para representar paisagens que proporcionassem uma impressão de realidade. Os jornais da época relatam que as pessoas que os visitavam descreviam a experiência como a de ser transportado para outro lugar, para outra cidade, quase como ter viajado para um lugar distante.
Um dos próximos passos dessa trajetória da imersão na arte se dá no final do século XIX, quando surge aquela que foi considerada a grande mídia imersiva do século XX: a sétima arte. Um dos primeiros filmes de sua história é A chegada do trem na estação (L’Arrivée d’un train en gare, 1895), dos irmãos Lumière. Diz-se que, em sua primeira exibição, a imagem projetada do trem em movimento causara tamanha impressividade que diversos espectadores presentes correram na direção contrária à tela, acreditando que poderiam realmente ser atingidos pelo trem que a película projetava. Ali se deu uma das primeiras — de muitas — experiências conhecidas de imersão através do cinema.
O cinema do futuro e a realidade virtual
A partir da década de 1950 começou a se desenvolver o conceito de “cinema do futuro”. Morton Heilig, considerado por muitos como o pai da realidade virtual, acreditava que o cinema do futuro ofereceria experiências ilusórias a todos os sentidos, incluindo paladar, olfato e toque, além de cobrir 100% do campo de visão do espectador. Heilig acreditava que no futuro “a tela circundaria os ouvidos do espectador e iria além de sua esfera de visão, acima e abaixo”.
Duas de suas invenções são bastante notáveis neste sentido. A primeira delas é uma televisão estereoscópica para uso individual (patenteada em 1960) que cobria completamente o campo de visão do espectador. Em seguida, Heilig criou o Sensorama: a primeira máquina com tecnologia multi sensorial imersiva. Nela, o usuário sentava-se sobre uma motocicleta imaginária e, com seu rosto inserido em um aparelho, via a imagem de sua “motocicleta” avançar pelas ruas de Manhattan. A experiência era complementada pelo barulho do trânsito, por odores e por vibrações geradas pelo aparelho.
Diversos outros experimentos surgiram entre as décadas de 70 e os anos 2000. A união entre imagem e computador possibilitou o surgimento de softwares interativos, a construção de mundos virtuais completamente críveis, situações e ambientes criados e controlados por computador. Os avanços na ciência computacional possibilitaram a criação de tecnologias e ambientes capazes de proporcionar experiências de imersão mais críveis e efetivas, culminando no que hoje compreendemos como realidade virtual, que pouco a pouco se populariza, torna-se mais acessível e encontra utilidade em diversos campos de atuação.
Atualmente, pode-se dizer que a realidade virtual consiste em imagens e ambientes criados virtualmente e que, quando acessados pelo usuário, substituem o ambiente real. O conteúdo é acessado através de headsets (óculos VR) com capacidade variável de liberdade e interação dentro do ambiente virtual. Por meio desta tecnologia, são desenvolvidos simuladores para as forças aérea e marítima, a indústria de games cresce vertiginosamente, empresas se utilizam de simuladores para treinarem seus funcionários e escolas de medicina proporcionam a seus estudantes a experiência virtual de uma sala de cirurgia como forma de treinamento e preparação. Além, é claro, de estarmos em pleno desenvolvimento dos metaversos.
Também crescem os cruzamentos entre arte e realidade virtual, especialmente no campo do cinema e do audiovisual. Neste sentido, os conteúdos audiovisuais produzidos para serem consumidos em realidade virtual possuem potencial de gerar maior empatia no espectador, uma vez que, com o ponto de vista do usuário sendo utilizado como a perspectiva apresentada em seu campo de visão, a experiência do conteúdo pode de alguma forma ser compreendida como uma experiência pessoal.
As experiências imersivas, como vimos, traçam sua trajetória desde tempos muito antigos. Mencionamos exemplos de sua utilidade em diversos campos do conhecimento. O seu desenvolvimento nos mostra como somos atraídos e movidos por esta vontade de, mesmo que por um período curto de tempo, sentirmo-nos “suspensos” e “inseridos” em outra realidade. Neste sentido, as tecnologias facilitadoras da imersão continuarão a traçar seu caminho evolutivo — desvendando seus usos possíveis para, de alguma forma, servir à sociedade e associando-se à arte a fim de ampliar nossos horizontes imaginativos e nossa humanidade.
Referências
ARSENAULT, Dominic. Dark waters: Spotlight on immersion. In: Game On North America 2005 Conference Proceedings, 2005, p. 50–52.
Disponível em: https://papyrus.bib.umontreal.ca/xmlui/handle/1866/13052
BROWN, Emily; CAIRNS, Paul. A Grounded Investigation of Game Immersion. In CHI 2004, ACM Conference on Human Factors in Computing. New York: ACM Press, 2004, p.1297–1300.
Disponível em: https://doi.org/10.1145/985921.986048
GRAU, Oliver. Arte visual: da ilusão à imersão. São Paulo: Editora Senac São Paulo, Editora UNESP, 2007.
MURRAY, Janet. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural, Editora UNESP, 2003.
SPIRONELLI, Stella. A imersão na história da arte: um paralelo entre o passado e o presente. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2007
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*Membro do V Grupo de Pesquisa do ITS - "Metaverso ou multiverso?".