Banksy: anonimato e obras em lugares públicos
*Sérgio Branco e **Júlia Veloso
A remoção de obras de cunho político não é um evento incomum no mundo das artes de rua. O artista Banksy, mundialmente conhecido por suas obras de protesto, é um exemplo recorrente deste fenômeno. Em setembro, uma notícia sobre a remoção de um de seus murais ganhou destaque nos principais veículos de imprensa. Essa não é a primeira vez e, muito provavelmente, não será a última que o artista tem uma de suas obras apagadas.
Desta vez, para dar vida a mais uma de suas criações, o autor escolheu uma das paredes externas da Suprema Corte da Inglaterra, localizada na cidade de Londres. O mural contava com a representação de um juiz erguendo um martelo para agredir um manifestante, muito provavelmente em razão das dezenas de prisões nos protestos contrários à proibição do grupo Palestine Action que ocorreram no início do mês de setembro. Segue a obra abaixo:
A obra foi apagada da parede do edifício em menos de 48 horas após a sua criação. A justificativa para o ato, no entanto, não foi política. As autoridades locais informaram que a principal razão para a remoção se deu devido à importância histórica do edifício, considerado patrimônio tombado da cidade. O fato que nos interessa, contudo, diz respeito às implicações que este fenômeno, nada eventual, apresenta ao direito do autor.
Além da estética impressionante das suas obras, uma das principais características de Banksy é a preservação do anonimato. O autor nunca revelou a sua identidade verdadeira. Apesar disso, tem uma conta no Instagram onde publica uma fotografia sempre que cria uma nova obra, usando-a, de certo modo, para indicar sua ligação à criação do novo grafite.
A comunicação com o público e a real garantia de autenticidade de suas criações são feitas através do escritório/site denominado Pest Control, que se descreve como o único ponto de contato com o artista. Segundo as informações do site, para a verificação da autenticidade das obras, é preciso preencher um formulário e enviá-lo pela plataforma para que, após a sua análise, seja emitido um certificado. Ao que tudo indica, somente desta forma é possível ter alguma confirmação da autoria dos grafites de Banksy.
A situação do artista e a consequente remoção de suas pinturas nos levam a refletir sobre três questões centrais na temática do direito autoral. A primeira diz respeito à classificação das obras, especificamente se seriam publicadas anonimamente ou com pseudônimo, e as consequências disso. A segunda questão trata de como assegurar a integridade da obra quando não há autor identificável, considerando que esta garantia constitui um dos direitos morais do autor segundo a legislação brasileira. Por fim, a terceira questão está relacionada ao tratamento jurídico das obras situadas em espaços públicos, tendo em vista que este seria o caso dos grafites do autor.
Como são classificadas as obras de Banksy?
Segundo o artigo 5º, inciso VIII, alínea “b” e “c” da Lei de Direitos Autorais brasileira, obra anônima é aquela cujo autor não é indicado, seja por decisão própria ou por ser desconhecido; enquanto na obra pseudônima o criador se oculta sob nome fictício. O aspecto prático que diferencia essas criações das obras de autoria identificável reside apenas na contagem do prazo para entrada em domínio público, a depender de como entendermos anonimado ou pseudonímia.
Em obras de autoria anônima ou com uso de pseudônimo, o prazo para início da contagem da entrada em domínio público se inicia a partir de 1º de janeiro do ano imediatamente posterior ao de sua publicação. Conforme artigo 43 da LDA: “Será de setenta anos o prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre as obras anônimas ou pseudônimas, contado de 1° de janeiro do ano imediatamente posterior ao da primeira publicação”. Isso acontece porque, quando não se sabe quem é o autor da obra, não se pode usar o prazo padrão da lei: 70 anos contados em 1º de janeiro do ano seguinte à morte do autor. Contudo, nesse meio tempo, caso o criador anônimo venha a ser conhecido, contar-se-á o prazo a partir da sua data de falecimento.
O caso de Banksy é curioso. Embora haja ampla suspeita e reconhecimento público sobre a autenticidade de suas obras, inclusive por meio do seu escritório Pest Control, a sua real identidade permanece oculta. Não é possível, por exemplo, saber com precisão quais são as suas criações, se o autor permanece vivo ou se, sequer, existe apenas um único Banksy ou se se trata de um coletivo de artistas. Para efeitos práticos, as obras devem ser consideradas de autor anônimo ou que se vale de pseudônimo não publicamente identificável
Por outro lado, quando o pseudônimo funciona apenas como um “nome artístico”, sendo amplamente associado a uma determinada pessoa (caso, por exemplo, de Fernanda Montenegro. Seu nome civil é Arlette Pinheiro Monteiro Torres, mas todo mundo a conhece por seu pseudônimo), a contagem de prazo de proteção se dá na regra padrão da lei, prevsita em seu art. 41. Ou seja, a condição de autoria anônima ou com pseudômino só atrai para si a contagem do prazo previsto no art. 43 quando NÃO SE SABE quem é a pessoa por trás do pseudônimo ou do anonimato.
Nesse contexto, emerge a segunda questão: há como garantir a integridade da obra quando não há identificação formal do autor?
Este tópico se mostra especialmente relevante, em razão das inúmeras remoções a que as obras de Banksy estão sujeitas. O direito de assegurar a integridade da obra, ou seja, o poder de evitar a sua depreciação, alteração ou destruição, é, em regra, exercido pessoalmente pelo autor. No Reino Unido, onde a Banksy expôs a sua obra, a seção 80 do Copyright, Designs and Patents Act 1988, estabelece que “o autor de uma obra literária, dramática, musical ou artística protegida por direitos autorais, bem como o diretor de um filme protegido por direitos autorais, tem o direito, nas circunstâncias mencionadas nesta seção, de não ter sua obra sujeita a tratamento depreciativo”.
A classificação desta prerrogativa como direito moral a torna pessoal e intransferível, pelo menos enquanto o autor está vivo, fato que dificulta a defesa da integridade da obra por terceiros. A solução para isso, contudo, pode ser encontrada no estabelecimento de um agente ou representante legal que atue para garantir a integridade da obra e outros direitos morais, mantendo a proteção jurídica mesmo sem exposição pública da identidade do autor.
Ocorre que, para isso, seria necessária a formalização contratual desta condição, algo que não sabemos se existe no caso de Banksy. No entanto, ao que tudo indica, o artista utiliza o escritório Pest Control como algo que se assemelha a um procurador para a proteção de seus direitos morais.
De todo modo, em relação à sua última obra, segundo as autoridades, a remoção foi motivada pela relevância social do prédio da Suprema Corte da Inglaterra, considerado patrimônio histórico do país. Nesse caso, a preservação do patrimônio cultural, especialmente em um edifício público, se sobrepõe à preservação da obra autoral. Logo, ainda que o autor tivesse quem o representasse em favor da manutenção da obra, o direito moral poderia vir a ser mitigado em razão da prevalência do interesse público na conservação do prédio.
E como se dá a proteção de obra localizada em logradouro público?
Acerca disso, outro aspecto pode ser somado à questão. A obra de Banksy estava localizada em um logradouro público. Isso, por si, desfavorece a preservação da obra, tendo em vista que esta pode sofrer desgastes e deteriorações naturais ao ambiente em que se encontra. Além disso, considerando a característica de não rivalidade e não exclusão das obras localizadas em espaços públicos, torna-se bastante difícil impedir o seu uso por terceiros (como, por exemplo, a reprodução por fotografias da paisagem local).
A partir desta lógica que a Lei de Direitos Autorais excepcionou o monopólio autoral sobre as obras nesta condição: “Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais”. No entanto, o entendimento jurisprudencial sobre esse dispositivo expressa um posicionamento bastante divergente do que diz o artigo.
O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar casos recentes envolvendo grafites, fixou a tese de que “a exibição indireta e acessória de obras situadas permanentemente em logradouros públicos é livre e não caracteriza violação de direitos autorais, desde que não configurada sua exploração comercial”. Esse entendimento foi extraído dos julgados REsp 2174943/SP, REsp 1438343/MS, REsp 1562617/SP e REsp 951521/MA. Nessas ações, o STJ passou a condicionar o uso dessas obras, quando este for destinado à atividade econômica, à prévia autorização do autor. Ocorre que o artigo 48 da LDA não limita a finalidade comercial da utilização das obras em logradouro público. Na verdade, quando a finalidade comercial é proibida, a lei faz menção expressa a isso. Por exemplo, nos incisos II e VI do art. 46. Ja os incisos III e VIII, bem como o art. 47, não impedem o uso comercial — e ele de fato é permitido. A mesma lógica deveria prevalecer para o art. 48.
Seria até possível defender que a exploração econômica direta da obra situada permanentemente em logradouro público seria questionável, por caracterizar reprodução. Afinal, o art. 48 menciona o ato de representar, não reproduzir. Mas sendo a obra representada, não há impedimento a seu uso comercial. E o que seria isso? Muito provavelmente representar deve ser visto como um ato de reinterpretar. Assim, um fotógrafo que capta uma escultura em uma praça cria uma imagem da obra, não reproduzindo a obra em si. O mesmo vale para o cineasta que filma uma cena em frente a um monumento.
Contudo, e possível notar, ainda, nos Resp 951521/MA e REsp 1438343/MS, o estabelecimento de outro fundamento, bastante discutível do ponto de vista legal. Este também que em nada tem a ver com o disposto na LDA. Diz o acórdão do Resp 951521/MA: “A obra de arte colocada em logradouro da cidade, que integra o patrimônio público, gera direitos morais e materiais para o seu autor quando utilizado indevidamente foto sua para ilustrar produto comercializado por terceiro, que sequer possui vinculação com área turística ou cultural”. Segue também excerto do REsp 1438343/MS: “A reprodução da fotografia da obra nos ingressos da competição revelou-se, diretamente, vinculada ao escopo de divulgação do patrimônio turístico da cidade, sem qualquer reflexo no interesse do público em participar do evento”. A partir destes dois trechos, podemos afirmar que este aspecto se apresenta bastante distinto do que expressa o artigo 48 da lei. A importância turística e cultural não é um preceito citado pela nossa legislação neste contexto. Nos dois casos, portanto, o tribunal aplicou critérios que não existem na lei de direitos autorais e, com isso, limitou o acesso ao bem artístico exposto em local público.
Considerando que estes julgados se tornaram precedentes, as decisões mais recentes têm reproduzido os mesmos critérios para reconhecer ou não uma possível violação de direitos autorais. Um caso recente envolvendo um vídeo publicado em uma rede social, em que aparecia um grafite ao fundo na conhecida região do “Beco do Batman”, em São Paulo, deu origem ao Resp 2174943/SP, julgado em maio deste ano.
A decisão, apesar de reconhecer que a exibição de grafite em espaço público de forma indireta e acessória não viola os direitos de autor, não o fez com base nos argumentos constantes do artigo 48 da LDA. Mais uma vez o tribunal utilizou a exploração comercial da obra como fundamento para motivar a decisão:“A representação dessa espécie de obra é livre, dispensando a prévia e expressa autorização de seu autor, desde que: (i) não afete a exploração normal da obra, (ii) tal representação não provoque prejuízo injustificado aos legítimos interesses de seu autor; e (iii) não esteja imbuída do propósito de exploração eminentemente comercial”. Lembramos que o que deveria ser coibido é o ato de reproduzir. Desde que haja representação, não reprodução, a exploração comercial é livre.
Contudo, um grande senão. Importa lembrar que o artigo 48 da LDA não afasta a necessidade de atribuição da autoria da obra. Conforme inciso II, do artigo 24 da LDA, são direitos morais do autor: “o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra”. É um direito moral do autor ter o seu nome indicado como autor de sua criação e a sua localização pública não afasta esta condição. No caso do Banksy, como a situação de seus direitos morais não está tão definida, tendo em vista o seu completo anonimato, assim como a proteção da integridade da obra, a devida indicação da autoria também ficaria a critério da existência de um potencial representante legal. Mas nos demais casos, mesmo que havendo representação e uso, portanto, nos termos da limitação prevista em lei, a indicação de autoria é necessária.
A obra de Banksy, ao surgir e desaparecer nas paredes da cidade, desestabiliza os próprios fundamentos do direito autoral. Ela não pertence a um autor identificável, nem a um espaço delimitado: pertence ao instante em que é vista. Nesse sentido, sua arte encarna uma recusa à permanência, à propriedade e à autoria como formas de controle simbólico. O apagamento de seus murais, longe de ser apenas destruição, torna-se parte do gesto artístico: a efemeridade como estética e como política. Para o direito, isso é um problema; para a arte, é o próprio sentido. Representar, nesse contexto, é resistir à ideia de que a criação precisa ser conservada para existir. Banksy nos lembra que a arte pode ser, ao mesmo tempo, criação e desaparição. O direito que lute.
*Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Professor convidado do doutorado em Inovação, Ciência, Tecnologia e Direito da Universidade de Montréal. Professor de Direito Civil e de Propriedade Intelectual do Ibmec. Professor de Direito Civil e de Propriedade Intelectual da pós-graduação da FGV Direito Rio. Autor dos livros “Memória e Esquecimento na Internet”, “Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias”, “O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro — Uma Obra em Domínio Público” e “O que é Creative Commons — Novos Modelos de Direito Autoral em um Mundo Mais Criativo”. Especialista em propriedade intelectual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-Rio. Pós-graduado em Cinema Documentário pela FGV. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Advogado. Cofundador e diretor do ITS.
**Formada pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, Júlia é advogada com experiência em escritórios e órgãos públicos. Em busca de se especializar em Direito Autoral e Novas Tecnologias, possui mestrado em Políticas Públicas, Inovação e Propriedade Intelectual pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quer entender as consequências sociais e jurídicas da inovação tecnológica na cultura e, com isso, poder contribuir para uma sociedade mais justa e plural.
